segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Era uma bola Dente de Leite...

Era Dia das Crianças. Certa expectativa rondava o imaginário e o espaço público infanto-juvenil, a rua. Alguém haveria de ganhar uma bola, esse objeto coletivo por natureza, por meio do qual se constituem misteriosas relações de conhecimento e poder. Que o diga seu dono. Bola que nos ensina a brutalidade, o domínio, a paixão, o companheirismo, a ira dos vizinhos ou dos jogadores da rua de cima ou de baixo, a consciência cívica e o palavrão.
O dono da bola é um ser à parte. É escalação garantida, submetida a complexo processo de negociação que vai posicioná-lo nas regiões mais “modestas” do gramado. No nosso caso, era um “campinho de terra”, mas muitas vezes poderia ser o terror dos joelhos, coxas, cotovelos e mãos: o “raspadão” (terra em estado bruto).
Os campos são todos iguais, filosoficamente falando (seja lá o que for que isso signifique). Trata-se de uma estranha topografia traçada pelas posições e seus titulares. Um verdadeiro jogo simbólico, distribuindo a divisão de classes pelo gramado em função de sua classe dominante: os craques. Aqueles que muito cedo fazem questão de nos mostrar a noção dos nossos limites. E existem craques com diversos graus de craqueza, se é que me entendem...
A rua e o jogo são uma aula de Antropologia. O que diriam os deuses astronautas sobre o alinhamento de dois pedaços de tijolos com três passos de distância entre eles. Ou a combinação de três paus mais ou menos compridos formando uma espécie de |__| invertido. Pois, em nosso imaginário tropical, antropofágico e infantil, ele representa um universo, um mito. Uma força oculta é mobilizada diante dessas formas. As tardes entediadas ganham um sentido, mobilizam sonhos, caneladas e poeira. Troca de passes, lançamentos e chutes que mobilizam o cair da noite.
Tive a sorte de ter um campinho de terra em frente da minha casa, às margens de um córrego (poluído). Essas afinidades entre natureza e cultura em uma partida contra o “progresso”.
Mas, apesar de tudo, o campinho é a primeira conquista do povo. Campo com trave e tudo é um projeto de civilização. A parte superior dessa maravilhosa invenção tem o nome científico de “travessão” e era pregada, em cada ponta, a duas fortes colunas de estrutura eucalíptica. Para dar maior segurança (acho que deve existir certo espírito de CIPA infantil), pregava-se as pontas das traves ao travessão com latas de óleo. As latas eram abertas e pregadas nas pontas unindo os elementos em uma verdadeira sintaxe futebolística. Tudo isso pode parecer irrelevante, simples detalhes técnicos para o leitor desatento, mas será de fundamental importância nessa história.
Era dia das Crianças, como disse. Nossas esperanças estavam confirmadas. Alguém chegava ... (Um minuto! Em tempos de mídia imaginem essa cena em câmera lenta ) alguém chegava com uma bola dente de leite embaixo do braço... atravessava a rua... e... algum engraçadinho já dava-lhe um tapa liberando-a de seu dono para uma espécie de orgia imaginária infantil.
A chegada de uma bola em alguns campinhos é um momento anárquico. Alguns tentam organizar diversos gêneros futebolísticos com o número de jogadores disponíveis. Com dois, com três, com qualquer número par acima disso que dê para dividir um time. O duro é a obtenção do consenso, a escolha dos companheiros e o início da partida. Às vezes, a “panela” já está formada, às vezes ninguém toma a iniciativa do par ou ímpar, às vezes outros assuntos entram na agenda vespertina (meninas!).
É engraçado o processo de identificação dos companheiros ou do adversário no futebol. Sem camisa/com camisa ou a memória mesmo. Nunca é colocada em questão os com keds e os sem keds. E por falar nisso, keds é o nome genérico do “buti”, o que quer dizer tênis na língua oficial infantil do século passado. Entre esses objetos mobilizados para a prática futebolística, destaco o kichute (todos com k porque é muito mais chique). Uma bela peça de borracha e lona que dava ao seu portador poderes sobrenaturais no raspadão: aderência, velocidade, direção, precisão.
Precisão e direção são fundamentais quando se joga com uma bola dente-de-leite, pois ela desconhece essas qualidades. Pode-se dizer que tem vida própria, uma vontade própria de gol. Não adianta beijá-la, acariciá-la no chão, fazer montinho. Se há um destino, ele deve ser parecido com a trajetória de uma bola dente de leite.
Raramente, os meninos da rua tinham contato com uma espécie de “upgrade” da dente de leite. Preparem-se, caros leitores, pois estou falando da bola de capotão nº 5. Não vou tecer comentários sobre as qualidades que fazem da nº 5 uma bola diferente. Essa bola só aparecia quando, abnegadamente, produzia-se um exemplo de solidariedade de classe: a vaquinha.
Mas o mundo infantil é complexo e um problema novo surgia: a dificuldade que toda criança tem com o socialismo. Quebrava-se o maior pau para saber na casa de quem ficaria a bola. Alguns até a levavam para jogar com os primos em outros campos, o que caracterizava uma extrema falta de ética.
Bem... era dia das crianças... alguém ganhou uma bola...e finalmente, a mão invisível do futebol atuou na formação de 6 duplas. Assim, uma dupla dava quatro chutes, enquanto outra ficava no gol. Depois, revezavam-se. Quem conseguisse marcar mais gols no outro, disputava com outra dupla até que todos pudessem jogar. Com rebatida ou sem rebatida, com a possibilidade de voltar o chute, tudo dependia de uma complexa retórica e disponibilidade do uso da força física. É incrível, mas tudo funcionava sem um juiz! Algumas vezes, apelava-se aos amigos ou instaurava-se uma regra de maioria que nem sempre era seguida.
Bem... crianças, campo, duplas e tudo pronto para a estréia oficial da estrela do dia: a bola dente de leite (de plástico, branca com a simulação de alguns “gomos” pintados em preto e escrito, é claro: Dente de Leite). Tudo pronto. Primeira disputa, duas duplas preparam-se para o confronto. O esquema tático nesse momento é irrelevante e o que conta é a raça e o coração. Torcida, pressão das outras duplas, carros passando ao lado da “Arena”, mães chamando para ir ao Bar (buscar pão) ou tomar banho, enfim, pressão total.
É dado o primeiro chute oficial da série de partidas do dia. Com ele, tem início uma série de histórias a serem contadas aos filhos na velhice. Bem... o chute, então, foi dado.
Um chute. Com uma bola dente de leite. Como disse, o resultado disso é um mistério, um aprendizado à parte para os meninos da rua. Mas, espetacularmente, um dos membros da dupla que estava no gol, em um gesto reflexo, ergue o braço...(não quero abusar do recurso à câmera lenta, mas, se vocês estão acompanhando o que escrevi até agora, serão capazes de entender minha decisão). Peço ao leitor que reveja o lance em sua mente... a bola vindo... os olhares em sua direção... a bola bate na mão do defensor com os olhos arregalados de tanta adrenalina... é desviada para o vértice formado entre a trave e o travessão (que tem o nome científico de “forquilha”)... bate e sai... quero dizer, SAAAAAAAAI! pela linha de fundo...
Todos já podem sair da câmera lenta.
Nesse momento da crônica, sinto que talvez tenha de apelar a algum ditado chinês. Penso em algo que possa aplacar a tristeza, o inconformismo e, posteriormente, a ira que o encontro entre as arestas da forquilha abraçada pela lata de óleo (com toda uma história de contribuições às nossas famílias) e a superfície de uma bola dente de leite foi capaz de gerar. Sim, aquilo que fere todo o sentido da existência da bola (fenomenologicamente falando).
- Furou! resmunga alguém atônito...
- ...e no primeiro chute! – revoltam-se todos!

Um incidente desses mobiliza toda uma herança histórica e cultural de proporções oceânicas e não demorou muito para que um tsunami começasse a se direcionar rumo ao possível responsável pelo infortúnio. E tudo se resume à solução de um problema bastante complexo para as crianças: quem vai pagar uma bola nova?
É preciso reconstituir os fatos, apresentar as acusações, identificar o dolo, os atenuantes, sensibilizar a opinião pública e não preciso dizer que essa complexa peça de defesa foi feita pelo meu parceiro... se é que me entendem...

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